A participação cívica é essencial para o desenvolvimento urbano sustentável, mas são poucas as ferramentas e soluções disponíveis para o fomentar na prática. Uma das novas abordagens que tem vindo a ser testada passa pela utilização de dinâmicas e elementos de jogos orientados para objetivos sérios. No UrbSecurity foi implementada uma destas abordagens com resultados surpreendentes
Vivemos tempos complexos. Enquanto as cidades crescem num mundo acelerado com uma mobilidade populacional sem precedentes, os conflitos surgem naturalmente. Neste contexto de globalização e mundialização, as cidades são os principais palcos de interação. Os mesmos espaços são utilizados por pessoas diferentes. Coexistem pessoas de diferentes origens éticas e culturais. Nas cidades experimenta-se assim o multiculturalismo, mas também os efeitos do desenvolvimento diferenciado. Existe riqueza lado a lado com pobreza. Paradoxalmente, na era da comunicação instantânea, faltam canais de interação. Os processos de gentrificação geram movimentações humanas e transformações que afetam bairros. Perdem-se as raízes e o sentimento comunitário nem sempre se desenvolve. Ficam as ilhas isoladas, de luxo e de pobreza, separadas por espaços de ninguém. Faltam os espaços físicos e culturais de construção social que poderiam alavancar a empatia social. O espaço público desempenha um papel fundamental como local de agregação e dissipação de conflitos, mas somente se a gestão da cidade tender para uma maior participação da população nos processos de tomada de decisões. A criação de identidade coletiva, sentimento de apropriação surge com o envolvimento das populações numa cidade que as considera, feita para elas. Planeadores, urbanistas e decisores políticos tentam fazer as suas propostas e realizações, mas precisam de considerar quem vive na cidade.
O esforço para tornar os processos de planeamento e gestão das cidades mais participativo, escapando aos processos hierárquicos do top para as bases, não é novo. Mas tem sido difícil concretizar processos em que as populações participem em larga escala ativamente, mesmo nos assuntos de maior proximidade não tem sido fácil. Por vezes até tem sido difícil incluir representantes, especialistas e técnicos (stakeholders) na elaboração de um urbanismo mais participado. Os processos de planeamento tendem a ser longos e complexos. Os cidadãos sentem que as suas opiniões não se transformam em ações. Falta a comunicação e a evidência de que a participação cívica e pública vale a pensa, que compensa o tempo que os cidadãos investiram nessas atividades. Não é claro para os cidadãos que a participação compensa. Muitos dos processos participativos tendem a ser participados sempre pelos mesmos cidadãos, enviesando as necessidades e prioridades dos territórios habitados. É fácil desencadear batalhas de ódio, de uns contra os outros, inviabilizando a necessária colaboração para viver em espaços partilhados. Falta eficácia, colaboração e o transformar destes processos em algo que seja agradável e consequente para os cidadãos. Mesmo os técnicos e especialistas em planeamento sentem dificuldades em fazer diferente, por falta de meios e conhecimento para implementar novos métodos. Por outro lado, os decisores políticos podem desconfiar da suposta perda de poder, mas principalmente do desperdício de tempo e morosidade de alargar a tomada de decisõs às populações. No fundo todos querem realizações que melhorem a cidade.
Uma das soluções para responder às necessidades de todos os intervenientes num processo de planeamento urbano participativo são os jogos. É possível aprender com as dinâmicas de jogos para construir processos de planeamento mais interativos, eficazes e capazes de proporcionar experiências agradáveis aos utilizadores, através da aplicação de técnicas de ludificação (gamification) e de jogos sérios (serious games). Estas técnicas podem ser utilizadas em processos existentes ou gerar novos tipos de abordagens. Foi isso que foi feito no projeto UrbSecurity em Leiria. O UrbSecurity é um projeto que se desenvolve no âmbito do Programa URBACT, liderado pelo Município de Leiria, e acompanhado por mais 8 cidades europeias. O UrbSecurity implementou um processo colaborativo em que múltiplos stakeholders trabalharam com jogos analógicos para debater, identificar problemas e encontrar soluções conjuntas para melhorar a segurança urbana da cidade de Leiria, focando-se em duas zonas urbanas distintas. Trabalhou-se sobre o centro histórico de Leiria e sobre uma zona de expansão mais recente, caracterizada por uma elevada multiculturalidade. Para cada zona o Município de Leiria identificou vários stakeholders como parceiros de colaboração. Definiu-se um plano de trabalhos que consistiu em três etapas distintas para a implementação de um jogo final como ferramenta de planeamento colaborativo.
Optou-se por usar jogos analógicos, vulgarmente conhecidos como jogos de tabuleiro. Utilizaram-se jogos de design moderno, aproveitando os mecanismos e as experiências diferenciadas que proporcionam aos utilizadores. Este tipo de jogos têm a vantagem de serem mais fáceis de desenvolver e adaptar. Têm barreiras de entrada mais baixas que os jogos digitais e assentam em técnicas de facilitação e apoio aos jogadores que seriam trabalhadas pelos técnicos do município. São também jogos mais fáceis de adaptar e configurar, fomentando a colaboração entre participantes por obrigarem a uma ativação direta pelos participantes, sem informação oculta. O processo foi criado especificamente para as duas realidades urbanas em causa, conduzido por Micael Sousa, investigador do Departamento de Engenharia Civil da Universidade de Coimbra e do Centro de Investigação do Território, Transportes e Ambiente (CITTA), enquadrado nos trabalhos da sua tese de doutoramento. O investigador convidado atuou como formador dos técnicos do município, preparando-os para o processo de facilitação dos jogos, mas também como designers da adaptação e desenvolvimento dos jogos. O desenvolvimento das várias etapas dos jogos a usar no UrbSecurity foram construídas também seguindo os princípios da cocriação entre o investigador convidado e os técnicos do município. Assim a própria conceção do método alavancou o espírito de empatia e colaboração entre a equipa técnica. Apesar do objetivo ser gerar um jogo que fosse uma ferramenta de planeamento, foram muitos os jogos utilizados durante todas as etapas do processo. Isto permitiu gerar dinâmicas participativas únicas, pelo facto de serem jogos que ajudaram a construir outro jogo que resultou das interações e participação dos stakeholders e técnicos.
Na primeira etapa, os participantes interagiram através de dinâmicas de jogos que ocorreram em várias mesas de trabalho, cada uma acompanhada por um técnico do município. Utilizaram-se alguns jogos de tabuleiro modernos de storytelling e potenciadores de criatividade para identificar, de forma colaborativa, problemas e soluções que conduzam ao aumento da segurança na zona urbana em causa. Depois disto, os participantes foram convidados a votar em quais seriam os principais problemas, tendo-se seguido um processo de trabalho de grupo para preencher fichas de propostas preliminares para os principais problemas encontrados. Essas propostas foram novamente submetidas a votos. Foi realizada uma sessão para cada zona urbana, com uma duração de cerca de 3 horas e mais de duas dezenas de participantes em cada sessão. Das sessões apontaram-se como soluções o aumento da vigilância policial, a iluminação pública, a melhoria dos espaços e transportes públicos, programas de reabilitação urbana e programas sociais.
Na segunda etapa, já mais condicionada pelos efeitos da pandemia, foi necessário reduzir os grupos e trabalhar com um máximo de seis participantes por sessão. Foram feitas quatro sessões destas, duas para cada zona de estudo. Nesta segunda sessão, os participantes continuaram a identificar problemas e soluções, interagindo com a cartografia das várias zonas. Foram adaptados jogos de desenho de modo a gerar novas dinâmicas de comunicação e expressão entre os participantes. Foram feitas representações gráficas sobre mapas das zonas urbanas, gerando uma nova tangibilidade na recolha de informação. Foi também uma estratégia de fomento da empatia entre participantes. Recolheram-se nesta fase prioridades, que resultavam dos dois jogos de expressão gráfica. Seguiu-se um processo de votação que determinou as prioridades de cada grupo de trabalho. Tanto como na primeira etapa, foram distribuídos aos participantes autocolantes com múltiplos votos, o que gerou uma hierarquia de prioridades, pois os votos podiam ser atribuídos livremente. Este modo de votação graficamente impactante, transparente e interativo contribuiu para reforçar a empatia entre os participantes, tornando claro quais as preocupações de cada um. Apesar de existirem algumas prioridades opostas, não se sentiu qualquer conflito entre os participantes. A segunda fase foi precedida de exposição de informações técnicas adicionais aos participantes, para apoiar a tomada de decisões. Foram apresentados dados e expostos vídeos das zonas. O contexto de pandemia impediu que os locais fossem visitados presencialmente.
A segunda fase foi complementada com sessões on-line em que o facilitador simulou alguns dos jogos de desenho através de ferramentas colaborativas online com o apoio de plataformas de vídeo streamming. Apesar das limitações, o processo online também gerou debate, identificação de problemas e algumas prioridades. Foi uma forma de compensar as restrições que impediram o nível de interação que se registou na primeira sessão.
A terceira etapa resultou do culminar das duas etapas anteriores. Foram os dados recolhidos anteriormente com os problemas, prioridades e propostas que permitiu construir o jogo que seria então a ferramenta de planeamento colaborativo desejada. Contabilizaram-se as propostas e gerou-se uma economia de jogo que lançava aos participantes um desafio colaborativo. Conjugaram-se mecanismos de jogos de tabuleiro modernos para apoiar a narrativa, facilitando a leitura da complexidade crescente das soluções propostas. Os participantes deveriam assumir o papel de um executivo camarário e gerir, ao longo de 4 anos, o orçamento para melhorar a segurança urbana da zona em causa. Para isso teriam de tomar decisões individuais e coletivas. Para poder implementar soluções de grande dimensão teriam de discutir e conjugar o orçamento que cabia a cada um. Cada jogador recebia uma pequena fração do orçamento por ano (por ronda de jogo). Isto representava o seu poder de voto. Implementar edifícios para projetos sociais, redes extensas de transportes públicos e grandes espaços públicos obrigavam à cooperação de vários jogadores. As opões disponíveis eram representadas por componentes de jogos analógicos, cubos, discos e fios coloridos com as devidas legendas. O jogo decorreu sobre o mapa de cada zona urbana, dividido por uma malha hexagonal que ajudava a enquadrar o efeito das distâncias e áreas de influência das propostas, como por exemplo, a área de cobertura do policiamento, da videovigilância, a extensão de uma ciclovia ou onde se devia focar o marketing territorial.
A terceira etapa sofreu ainda dos efeitos restritivos da pandemia. Foram realizadas quatro sessões com seis participantes de cada vez, duas para cada zona urbana. Optou-se pela mesma estratégia da segunda. Surgiram então quatro propostas, duas por zona. Concluímos que, apesar de algumas semelhanças, as propostas eram diferentes, muito dependentes dos participantes e das dinâmicas que se geraram entre si. Isto leva-nos a concluir que os processos de participação devem ser alargados de modo a incluir o máximo de participantes possível, garantindo que existe diversidade e representatividade dos vários grupos sociais. Provou-se que os jogos geram soluções e são ferramentas de colaboração para expressar a vontade dos participantes. Ficou também claro que o processo como as abordagens jogáveis são criados é de extrema importância, tal como o método de recolha e tratamento de dados. Gera-se um ambiente lúdico que reforça a empatia e a colaboração, mas sem perder o foco na seriedade das questões em jogo.
O processo de desenvolvimento do jogo resultou das dinâmicas implementadas nas etapas anteriores, também elas alimentadas por jogos sociais. Este método só foi possível por ter sido desenvolvido com flexibilidade e capacidade de adaptação por parte da equipa técnica. Dificilmente um formato mais rígido poderia ter tido os mesmos resultados e ser implementado rapidamente e a custos reduzidos. Da recolha de dados constatou-se que os participantes ficaram surpreendidos com a dinâmica implementada, tendo admitido que sentiram desconfiança inicial por ser um processo alimentado por jogos. Mas ao verem os resultados consideraram o processo positivo, algo que deveria ser continuado, e que seria frustrante se as propostas desenvolvidas não fossem implementadas na prática.
No futuro o jogo final deverá ser testado com mais utilizadores, de preferência com mais representantes da população local. Será igualmente relevante tentar transferir este processo para outras zonas urbanas, uma vez que o modelo seguido permite ser aplicado a qualquer território urbano e para outros temas além da segurança urbana.
Texto da autoria de Micael Sousa, investigador em metodologias de jogos